terça-feira, 16 de novembro de 2021

Olhos d’água - Conceição Evaristo




Uma noite, há anos, acordei bruscamente e uma estranha pergunta explodiu de minha boca. De que cor eram os olhos de minha mãe? Atordoada custei reconhecer o quarto da nova casa em que estava morando e não conseguia me lembrar como havia chegado até ali. E a insistente pergunta, martelando, martelando... De que cor eram os olhos de minha mãe? Aquela indagação havia surgido há dias, há meses, posso dizer. Entre um afazer e outro, eu me pegava pensando de que cor seriam os olhos de minha mãe. E o que a princípio tinha sido um mero pensamento interrogativo, naquela noite se transformou em uma dolorosa pergunta carregada de um tom acusatório. Então, eu não sabia de que cor eram os olhos de minha mãe?

Sendo a primeira de sete filhas, desde cedo, busquei dar conta de minhas próprias dificuldades, cresci rápido, passando por uma breve adolescência. Sempre ao lado de minha mãe aprendi conhecê-la. Decifrava o seu silêncio nas horas de dificuldades, como também sabia reconhecer em seus gestos, prenúncios de possíveis alegrias. Naquele momento, entretanto, me descobria cheia de culpa, por não recordar de que cor seriam os seus olhos. Eu achava tudo muito estranho, pois me lembrava nitidamente de vários detalhes do corpo dela. Da unha encravada do dedo mindinho do pé esquerdo... Da verruga que se perdia no meio da cabeleira crespa e bela... Um dia, brincando de pentear boneca, alegria que a mãe nos dava quando, deixando por uns momentos o lava-lava, o passa-passa das roupagens alheias, se tornava uma grande boneca negra para as filhas, descobrimos uma bolinha escondida bem no couro cabeludo ela. Pensamos que fosse carrapato. A mãe cochilava e uma de minhas irmãs aflita, querendo livrar a boneca-mãe daquele padecer, puxou rápido o bichinho. A mãe e nós rimos e rimos e rimos de nosso engano. A mãe riu tanto das lágrimas escorrerem. Mas, de que cor eram os olhos dela?

Eu me lembrava também de algumas histórias da infância de minha mãe. Ela havia nascido em um lugar perdido no interior de Minas. Ali, as crianças andavam nuas até bem grandinhas. As meninas, assim que os seios começavam a brotar, ganhavam roupas antes dos meninos. Às vezes, as histórias da infância de minha mãe confundiam-se com as de minha própria infância. Lembro-me de que muitas vezes, quando a mãe cozinhava, da panela subia cheiro algum. Era como se cozinhasse ali, apenas o nosso desesperado desejo de alimento. As labaredas, sob a água solitária que fervia na panela cheia de fome, pareciam debochar do vazio do nosso estômago, ignorando nossas bocas infantis em que as línguas brincavam a salivar sonho de comida. E era justamente nos dias de parco ou nenhum alimento que ela mais brincava com as filhas. Nessas ocasiões a brincadeira preferida era aquela em que a mãe era a Senhora, a Rainha. Ela se assentava em seu trono, um pequeno banquinho de madeira. Felizes colhíamos flores cultivadas em um pequeno pedaço de terra que circundava o nosso barraco. Aquelas flores eram depois solenemente distribuídas por seus cabelos, braços e colo. E diante dela fazíamos reverências à Senhora. Postávamos deitadas no chão e batíamos cabeça para a Rainha. Nós, princesas, em volta dela, cantávamos, dançávamos, sorríamos. A mãe só ria, de uma maneira triste e com um sorriso molhado... Mas de que cor eram os olhos de minha mãe? Eu sabia, desde aquela época, que a mãe inventava esse e outros jogos para distrair a nossa fome. E a nossa fome se distraía.

Às vezes, no final da tarde, antes que a noite tomasse conta do tempo, ela se assentava na soleira da porta e juntas ficávamos contemplando as artes das nuvens no céu. Umas viravam carneirinhos; outras, cachorrinhos; algumas, gigantes adormecidos, e havia aquelas que eram só nuvens, algodão doce. A mãe, então, espichava o braço que ia até o céu, colhia aquela nuvem, repartia em pedacinhos e enfiava rápido na boca de cada uma de nós. Tudo tinha de ser muito rápido, antes que a nuvem derretesse e com ela os nossos sonhos se esvaecessem também. Mas, de que cor eram os olhos de minha mãe?

Lembro-me ainda do temor de minha mãe nos dias de fortes chuvas. Em cima da cama, agarrada a nós, ela nos protegia com seu abraço. E com os olhos alagados de pranto balbuciava rezas a Santa Bárbara, temendo que o nosso frágil barraco desabasse sobre nós. E eu não sei se o lamento-pranto de minha mãe, se o barulho da chuva... Sei que tudo me causava a sensação de que a nossa casa balançava ao vento. Nesses momentos os olhos de minha mãe se confundiam com os olhos da natureza. Chovia, chorava! Chorava, chovia! Então, porque eu não conseguia lembrar a cor dos olhos dela?

E naquela noite a pergunta continuava me atormentando. Havia anos que eu estava fora de minha cidade natal. Saíra de minha casa em busca de melhor condição de vida para mim e para minha família: ela e minhas irmãs que tinham ficado para trás. Mas eu nunca esquecera a minha mãe. Reconhecia a importância dela na minha vida, não só dela, mas de minhas tias e todas a mulheres de minha família. E também, já naquela época, eu entoava cantos de louvor a todas nossas ancestrais, que desde a África vinham arando a terra da vida com as suas próprias mãos, palavras e sangue. Não, eu não esqueço essas Senhoras, nossas Yabás, donas de tantas sabedorias. Mas de que cor eram os olhos de minha mãe?

E foi então que, tomada pelo desespero por não me lembrar de que cor seriam os olhos de minha mãe, naquele momento, resolvi deixar tudo e, no outro dia, voltar à cidade em que nasci. Eu precisava buscar o rosto de minha mãe, fixar o meu olhar no dela, para nunca mais esquecer a cor de seus olhos.

E assim fiz. Voltei, aflita, mas satisfeita. Vivia a sensação de estar cumprindo um ritual, em que a oferenda aos Orixás deveria ser descoberta da cor dos olhos de minha mãe.

E quando, após longos dias de viagem para chegar à minha terra, pude contemplar extasiada os olhos de minha mãe, sabem o que vi? Sabem o que vi?

Vi só lágrimas e lágrimas. Entretanto, ela sorria feliz. Mas, eram tantas lágrimas, que eu me perguntei se minha mãe tinha olhos ou rios caudalosos sobre a face? E só então compreendi. Minha mãe trazia, serenamente em si, águas correntezas. Por isso, prantos e prantos a enfeitar o seu rosto. A cor dos olhos de minha mãe era cor de olhos d’água. Águas de Mamãe Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla a vida apenas pela superfície. Sim, águas de Mamãe Oxum.

Abracei a mãe, encostei meu rosto no dela e pedi proteção. Senti as lágrimas delas se misturarem às minhas.

Hoje, quando já alcancei a cor dos olhos de minha mãe, tento descobrir a cor dos olhos de minha filha. Faço a brincadeira em que os olhos de uma são o espelho dos olhos da outra. E um dia desses me surpreendi com um gesto de minha menina. Quando nós duas estávamos nesse doce jogo, ela tocou suavemente o meu rosto, me contemplando intensamente. E, enquanto jogava o olhar dela no meu, perguntou baixinho, mas tão baixinho como se fosse uma pergunta para ela mesma, ou como estivesse buscando e encontrando a revelação de um mistério ou de um grande segredo. Eu escutei, quando, sussurrando minha filha falou:

Mãe, qual é a cor tão úmida de seus olhos?




Pesquisado dia 16/11/2021 em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/24-textos-das-autoras/929-conceicao-evaristo-olhos-d-agua

domingo, 14 de novembro de 2021

Consciência Negra - Amaro 2021




Como muitos de vocês devem saber, fui aluna desta faculdade, há muitas luas. Eu me sentava nessas mesmas cadeiras (às vezes ainda com o pijama sob o casaco) e olhava para a luz que entra por estas janelas. Eu ouvia dezenas de palestras encorajadoras e cantei e ouvi música maravilhosa. Acho que sentia que ia voltar para falar deste lado do pódio. Acho que naquele tempo, quando eu estudava aqui, adolescente ainda, eu já pensava no que diria a vocês, hoje.

Talvez os surpreenda saber que não pretendo falar (talvez até o período de perguntas e respostas) sobre guerra e paz, economia, racismo ou sexismo, ou sobre os triunfos e atribulações dos negros ou das mulheres. Nem sobre filmes. Embora os mais atentos possam ouvir em minhas palavras a preocupação por alguns desses assuntos, vou falar sobre algo muito mais perto de nós. Vou falar sobre cabelo. Não se preocupem com o estado dos seus cabelos neste momento.

Não fiquem alarmados. Não se trata de uma avaliação. Simplesmente quero compartilhar com vocês algumas experiências com nosso amigo cabelo, e espero entreter e divertir a todos.

Durante um longo tempo, desde a primeira infância até a idade adulta crescemos física e espiritualmente (incluindo o intelecto com o espírito), sem que nos demos muito conta do fato. Na verdade, alguns períodos do nosso crescimento são tão confusos, que nem percebemos que se trata de crescimento. Podemos nos sentir hostis, zangados, chorosos ou histéricos, ou deprimidos. Jamais nos ocorre, a não ser que encontremos por acaso um livro ou uma pessoa capaz de explicar, que estamos em processo de mudança, de crescimento espiritual. Sempre que crescemos, sentimos, como a semente nova deve sentir o peso e a inércia da terra, quando procura sair da casca para se transformar numa planta. Geralmente não é uma sensação agradável. Porém, o mais desagradável é não saber o que está acontecendo. Lembro-me das ondas de ansiedade que me envolviam nos diferentes períodos de minha vida, sempre se manifestando por meio de distúrbios físicos (insônia, por exemplo) e como eu ficava assustada, porque não entendia como aquilo era possível.

Com a idade e a experiência, vocês ficarão satisfeitos em saber, o crescimento torna-se um processo consciente e reconhecido. Ainda um pouco assustador, mas pelo menos compreendido. Aqueles longos períodos, quando algo dentro de nós parece estar esperando, contendo a respiração, sem saber qual será o próximo passo, com o tempo transformam-se em períodos esperados, pois enquanto ocorrem, compreendemos que estamos sendo preparados para a próxima fase da nossa vida e que provavelmente vai se revelar um novo nível de personalidade.

Alguns anos atrás passei por um longo período de inquietação, disfarçado em imobilidade. Isto é, isolei-me do grande mundo a favor da paz do meu mundo pessoal, muito menor. Eu me desliguei da televisão e dos jornais (um grande alívio!), dos membros mais perturbadores da minha grande família, e da maioria dos amigos. Era como se eu tivesse chegado a um teto no meu cérebro. E sob esse teto minha mente estava extremamente inquieta, embora tudo em mim estivesse calmo.

Como é comum nesses períodos de introspecção, contei as contas do meu progresso neste mundo. No relacionamento com a família e os antepassados eu agira respeitosamente (nem todos concordarão, acredito); no meu trabalho eu havia feito, usando toda a habilidade de que disponho, tudo que era exigido de mim; no relacionamento com as pessoas com quem convivo diariamente, eu agira com todo amor que podia encontrar no meu íntimo, Eu começava também, finalmente, a reconhecer minha responsabilidade para com a Terra c minha adoração do Universo. O que mais então eu devia fazer? Por que, quando eu meditava e procurava o alçapão de escape no alto do meu cérebro, o qual, nos outros estágios do crescimento, eu sempre tive a sorte de encontrar, só achava agora um teto, como se o caminho para me identificar com o infinito, o caminho que eu costumava trilhar, estivesse selado?

Certo dia, depois de ter feito ansiosamente essa pergunta durante um ano, ocorreu-me que, no meu ser físico, havia uma última barreira para minha libertação espiritual, pelo menos naquela fase: meu cabelo.

Não meu amigo cabelo propriamente, pois logo percebi que ele era inocente. O problema era o modo pelo qual eu me relacionava com ele. Eu estava sempre pensando nele. Tanto que, se meu espírito fosse um balão, ansioso para voar e se confundir com o infinito, meu cabelo seria a pedra que o ancoraria à Terra. Compreendi que seria impossível continuar meu desenvolvimento espiritual, impossível o crescimento da minha alma, impossível poder olhar para o Universo e esquecer meu ego completamente nesse olhar (uma das alegrias mais puras!) se continuasse presa a pensamentos sobre meu cabelo. Compreendi de repente porque freiras e monges raspam as cabeças!

Olhei no espelho e comecei a rir de felicidade! Tinha conseguido abrir a pele da semente e estava subindo dentro da terra.

Então comecei as experiências. Durante alguns meses usei longas tranças (era moda entre as mulheres negras na época) feitas com o cabelo de mulheres coreanas. Eu adorava isso. Realizava minha fantasia de ter cabelos longos e dava ao meu cabelo curto e levemente processado (oprimido) a oportunidade de crescer. A jovem que trançava meu cabelo era uma pessoa que eu acabei adorando – uma jovem mãe lutadora; ela e a filha chegavam à minha casa às sete da noite e conversávamos, ouvíamos música, comíamos pizzas ou burritos, enquanto ela trabalhava, até uma ou duas horas da manhã. Eu adorava o artesanato dos desenhos criados por ela para a minha cabeça. (Trabalho de cesteiro! exclamou uma amiga, tocando a teia intrincada na minha cabeça.) Eu adorava sentar entre os joelhos dela como sentava entre os joelhos de minha mãe e de minha irmã enquanto elas trançavam meu cabelo, quando eu era pequena. Eu adorava o fato do meu cabelo crescer forte e saudável sob as “extensões”, coma eram chamadas as tranças.

Eu adorava pagar a uma jovem irmã por um trabalho realmente original e que fazia parte da tradição do penteado dos negros. Eu adorava o fato de não precisar tratar do meu cabelo a não ser com intervalos de dois ou três meses (pela primeira vez na vida eu podia lavar a cabeça todos os dias, se quisesse, e não fazer nada mais). Porém, uma vez ou outra as tranças tinham de ser retiradas (um trabalho de quatro a sete horas) e feitas novamente (mais sete a oito horas); também eu não me esquecia das mulheres coreanas que, de acordo com minha jovem cabeleireira, deixavam crescer o cabelo expressamente para vender. É claro que essa informação me fez pensar (e, sim, me preocupar) sobre os outros aspectos de suas vidas.

Quando meu cabelo atingiu dez centímetros de comprimento, dispensei o cabelo das minhas irmãs coreanas e trancei o meu. Só então renovei o conhecimento com suas características naturais. Descobri que era flexível, macio reagindo quase com sensualidade à umidade. Com as pequenas tranças girando para todos os lados, menos para onde eu queria que virassem, descobri que meu cabelo era voluntarioso, exatamente como eu! Vi que meu amigo cabelo, tendo recuperado vida própria, tinha senso de humor. Descobri que eu gostava dele.

Mais uma vez na frente do espelho, olhei para minha imagem e comecei a rir. Meu cabelo era uma dessas criações estranhas, incríveis, surpreendentes, de parar o tráfego – um pouco parecido com as listras das zebras, com as orelhas do tatu ou os pés azul-elétrico do mergulhão – que o universo cria sem nenhum motivo especial a não ser demonstrar sua imaginação ilimitada. Compreendi que jamais tivera a oportunidade de apreciar o cabelo em sua verdadeira natureza. Descobrir que ele, na verdade, tinha uma natureza própria. Lembrei-me dos anos que passei agüentando cabeleireiros – desde o tempo de minha mãe – que faziam trabalho missionário nos meus cabelos. Eles dominavam, suprimiam, controlavam. Agora, mais ou menos livre, ele ficava todo espetado para todos os lados. Eu telefonava para todos meus amigos no país para relatar as travessuras do meu cabelo. Ele jamais pensava em ficar deitado. Deitar de costas, na posição missionária, não o interessava. Ele cresceu. Ficar curto, cortado quase até a raiz, outra “solução” missionária, também não o interessava. Ele procurava espaços cada vez maiores, mais luz, mais dele mesmo. Ele adorava ser lavado; mas isso era tudo.

 

Finalmente descobri exatamente o que o cabelo queria: queria crescer, ser ele mesmo, atrair poeira, se esse era seu destino, mas queria ser deixado em paz por todos, incluindo eu mesma, os que não o amavam como ele era. O que acham que aconteceu? (Além disso, agora eu podia, como um bônus adicional, compreender Bob Marley como o místico que suas músicas diziam que era). O teto no alto do meu cérebro abriu-se; mais uma vez minha mente (e meu espírito) podia sair de dentro de mim. Eu não estaria mais presa à imobilidade inquieta, eu continuaria a crescer. A planta estava acima do solo.

Essa foi a dádiva do meu crescimento, no meu quadragésimo ano. Isso e saber que enquanto existir alegria na criação haverá sempre novas criações para descobrir, ou redescobrir, e que o melhor lugar para olhar é dentro de nós mesmos. Que a própria morte, sendo parte da vida, deve oferecer pelo menos um momento de prazer.

Fiz esta palestra no Dia dos Fundadores, 11 de abril de 1987, no Spelman College, Atlanta

Pesquisado 15/11/2021 em https://www.geledes.org.br/cabelo-oprimido-e-um-teto-para-o-cerebro/